quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

....linchamento, prova ilícita e relaxamento da prisão....





O flagrante se vicia pela ilicitude da prova, decorrente das violações sofridas pelo réu




A decisão que segue é do juiz João Marcos Buch, da Comarca de Joinville e aprecia a legalidade da prisão em flagrante de pessoa acusada de tentativa de furto, vítima de um início de linchamento.

Como afirma o magistrado, “Não é razoável, aliás, é injustificável que pessoas, nutridas por sentimento paranóico coletivo de vingança, arvorem-se em senhores do bem e do mal para agredir de forma covarde um jovem envolvido em um delito”.

A solução dada pelo juiz é “que o flagrante acaba por ser viciado, em razão da ilicitude da prova, ilicitude esta decorrente das violações supra elencadas”.



Ação: Auto de Prisão Em Flagrante

Os juízes não são juízes porque combatem a criminalidade, ou porque, intrépidos como mocinhos do faroeste, enfrentam e duelam com os bandidos, os malvados e os maltrapidos. Os juízes – e a lição é tão antiga quanto eles próprios! – são juízes simplesmente porque dizem publicamente o direito. E dizer o direito hoje é, antes de mais nada, pregar a Constituição, suas garantias, seus fundamentos, seus princípios e suas liberdades. Feito isso, feito apenas isso, os juízes cumprem e bem cumprem o que deles se reclama ( Editorial do Boletim da Associação Juízes Para a Democracia – ano 6, n.29)

Vistos.

O autuado J, de 19 anos, tecnicamente primário, servente de pedreiro, solteiro, foi preso em flagrante porque teria na noite de 22.5.11 tentado subtrair bens, nada conseguindo retirar, de uma residência ao tempo desocupada, através do arrombamento de uma janela. Segundo os policiais ouvidos, ao chegarem no local encontraram o autuado já detido por populares, tendo verificado que ele apresentava ferimentos na cabeça e pelo corpo em razão de agressão sofrida pelos mesmos populares, tendo assim que chamar os paramédicos para socorro. A vítima por sua vez disse que estava fora de Joinville e ao saber dos fatos retornou, encontrando a casa já arrombada. Disse que soube por outras pessoas que populares haviam "pego de pau" o autuado. Nenhum dos referidos populares foi inquirido pela autoridade policial. Junto aos autos fotografias do autuado com bandagens na cabeça mostrando a olhos nus os ferimentos.

Como se vê, as agressões desferidas contra o autuado não decorreram de legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de um direito. O autuado ao que se observa já estava detido por várias pessoas quando passou a ser agredido.

Este magistrado não pode compactuar com o ocorrido, jamais. Não é razoável, aliás, é injustificável que pessoas, nutridas por sentimento paranóico coletivo de vingança, arvorem-se em senhores do bem e do mal para agredir de forma covarde um jovem envolvido em um delito, se não de menor potencial, de menor gravidade e sem violência contra a pessoa (tentativa de furto com arrombamento).

Os novos padrões de civilidade e os fundamentos do Estado Democrático de Direito não permitem, em absoluto, a medieval "justiça pelas próprias mãos". Estes fundamentos, ao contrário do que muitos pensam, são conquistas de todos, da vítima, do réu, deste magistrado, do Promotor de Justiça, do advogado, dos populares, dos trabalhadores, dos pais de família, das crianças, adultos e idosos, ou seja, de todos os sujeitos, todos os seres humanos. São garantias de que nunca ninguém jamais sofrerá vinditas e suplícios e que todos, sempre que acusados de um delito, terão direito a um julgamento resultante do devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, perante o Juízo Competente. Admitir atos de barbárie como o que hora se anuncia é retroceder no tempo, para antes até mesmo de Beccaria (Dos Delitos e das Penas).

Aliás, conforme os comandos constitucionais é direito do preso ter sua integridade física e moral respeitadas (art.5º, XLIX). Sempre é bom repetir que o Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil, consistente na dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF), já suficientemente solidificado, precisa ser respeitado. E neste ponto, segundo os ensinamentos do Ministro Celso de Melo a dignidade da pessoa humana "representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art.1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art.7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência" (HC n. 85.988, 2ª Turma, j.04.05.10, v.u., DJU 28.05.10).

O resultado no caso dos autos aliás é que o flagrante acaba por ser viciado, em razão da ilicitude da prova, ilicitude esta decorrente das violações supra elencadas. E uma vez ilícitas, não podem ser aproveitadas (art.5º, LVII, da Constituição Federal c/c art.157, do Código de Processo Penal).

Ex positis:

Em obediência ao Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil, consistente na dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF), com base na garantia de respeito à integridade física e moral aos presos (art.5ª, XLIX, da CF), no Estado Democrático de Direito, que veda a "justiça pelas próprias mãos", bem como na inadmissibilidade da prova ilícita (art.5º, LVII, da CF e art.157, do CPP) RELAXO A PRISÃO de J.L.L. (art.5º, LXV, da CF). Expeça-se o r. Alvará de Soltura, se por al não estiver preso.

Incabível a decretação de prisão preventiva tendo em conta a primariedade do réu e a natureza do delito.

Intime-se o Ministério Público.

Requisite-se à autoridade policial a instauração de inquérito policial para apurar os delitos em tese de lesões corporais e tortura sofridos pelo autuado, independentemente de outros que se verificarem.

Aguardem-se as demais peças do auto.

Joinville (SC), 23 de maio de 2011.


João Marcos Buch
Juiz de Direito

domingo, 18 de dezembro de 2011

....o custo humano da guerra fria....

Contrabando de quinze mil crianças é a página mais triste das retaliações americanas à Revolução Cubana







Os últimos soldados da guerra fria, Fernando Morais




Espiões cubanos enviados secretamente a Miami para serem infiltrados em organizações anticastristas de modo a evitar atentados contra pontos turísticos na ilha. Espionagem, contraespionagem, terrorismo e política, narrados de uma forma eletrizante. Apesar de emocionante, o thriller de Fernando Morais (“Os últimos soldados da guerra fria') não tem nada de ficção.

É história recente, mas praticamente desconhecida entre nós. As escaramuças e retaliações americanas à Revolução Cubana, e a contundente ação dos dissidentes sediados em Miami pode ajudar a jogar luz sobre a violação de direitos humanos na ilha –e no continente americano.

De todos os episódios que Morais narra, inclusive para contextualizar as ações de ambos os lados, o mais impactante é a Operação Peter Pan. Por ela, quase quinze mil crianças cubanas foram contrabandeadas para os EUA, sob falsas ameaças. De novo, parece enredo de ficção. Mas Fernando Morais a relata com uma preciosidade de detalhes e ajuda a compreender como a propagação do terror com o mote 'comunista come criancinha' foi muito mais real e muito mais drástico do que uma piada de mau gosto.

Conheça o episódio pela narrativa do autor.


No auge das primeiras confrontações entre Havana e Washington, a CIA e o arcebispo Coleman Caroll, titular da arquidiocese de Miami, arquitetaram um espantoso plano de transferência massiva de crianças de Cuba para os Estados Unidos, para o qual contaram com o apoio indispensável da Igreja cubana. Batizada de Operação Peter Pan e inspiradora de livros e filmes, a ação teve início numa noite de outubro de 1960, com a patética proclamação de um locutor da rádio Swan, stacão de ondas médias da CIA instalada na ilha Cisne, em território hondurenho, para transmitir programas dirigidos a Cuba. "Mães cubanas! O governo revolucionário está planejando roubar seus filhos!", gritava o radialista. "Quando fizerem cinco anos, seus filhos serão transformados em monstros materialistas! Alerta, mães cubanas! Não deixem que o governo roube seus filhos!" O segundo passo foi dado na manhã seguinte, quando centenas de milhares de panfletos foram espalhados pelo país com o texto de uma falsa lei, redigida nos escritórios da CIA, que estaria para ser posta em vigor, "a qualquer momento" pelo governo de Cuba. Repleto de considerandos e de citações da legislação em vigor, o documento apócrifo era assinado por "Doutor Fidel Castro Ruz, primeiro-ministro" e pelo então presidente da República, Osvaldo Dorticós.





(...)


O homem escolhido pela arquidiocese para executar o plano era o padre Bryan Walsh, um irlandês cinquentão de 1,90 metros de estatura e físico de pugilista que vivia nos Estados Unidos desde a juventude. Ao chegar a Havana, semanas depois, levando na bagagem nada menos do que quinhentos vistos de entrada nos Estados Unidos em branco, Walsh encontrou uma sociedade chocada. Os desmentidos do governo revolucionário não tinham sido suficientes para diminuir a apreensão das famílias cubanas. Além disso, vigários de paróquias de todo o país, especialmente no interior, onde vivia a população mais simples e desinformada, se encarregaram de difundir a macabra versão de que as crianças separadas dos pais seriam removidas para Moscou e transformadas em alimento enlatado para o consumo da população russa. Não era a primeira vez que se utilizava para fins políticos história tão medonha e inverossímil. A anedota segundo a qual comunistas comiam pessoas nascera no fim da Segunda Guerra, quando a máquina de propaganda fascista inundara a Itália de folhetos que afirmavam que os soldados italianos que se entregassem ao Exército Vermelho seriam mortos, triturados e transformados em comida para saciar a fome que dizimava milhões na Rússia stalinista.






(...)

....quando a Operação Peter Pan foi concebida, Cuba e Estados Unidos ainda mantinham relações normais. Centenas de viajantes cruzavam diariamente o estreito da Flórida, nos dois sentidos, nos voos que ligavam a capital cubana à Flórida. E a ponte aérea entre Havana e Miami foi o caminho escolhido pelo ladre Walsh para por em prática a operação. Por exigência da CIA, ninguém viajaria acompanhado dos pais. Os quinhentos formulários em branco que o religioso levara na primeira viagem não seriam suficientes, como se saberia mais tarde, para atender sequer a 5% dos pequenos candidatos à salvação do inferno comunista.

(...)


Segundo a ONG americana Pedro Pan Group, ao todo foram contrabandeados 14048 menores, de ambos os sexos, alguns dos quais acabariam por se converter em personagens da vida pública norte-americana, como o senado republicano Mel Martinez, o ex-prefeito de Miami, Tomás Regalado, e os diplomatas Eduardo Aguirre, nomeado embaixador na Espanha pelo presidente George W. Bush, e Hugo Llorens, que era embaixador em Honduras em 2009, quando da deposição do presidente Manuel Zelaya. Instalados inicialmente em orfanatos católicos e instituições de caridade, milhares deles jamais voltariam a ver os pais e mães. No começo de 1962 chagava ao fim a Operação Peter Pan, um dos mais dramáticos e dolorosos episódios da história da Revolução Cubana.
 
Por Marcelo Semer

sábado, 17 de dezembro de 2011

O juiz dá um tiro no pé e sai contando vantagens


Cena de Tempos Modernos (Chaplin)

O QUE TEM SIDO AS DECISÕES JUDICIAIS NA URGÊNCIA DE AGORA.
O juiz dá um tiro no pé e sai contando vantagens.

Denival Francisco da Silva *

Dentre os tantos problemas que aflige a prestação jurisdicional, por certo, a morosidade é o tema mais recorrente. Ouço isso desde quando iniciei o curso de direito, no ano de 1987. Tendo ingressado na magistratura em 1993, passei a ouvir com maior frequência e a me incomodar imensamente com isso. Mas ao mesmo tempo em que me via impedido de atender toda a demanda em menor tempo, constrangia-me (e ainda constrange) o fato de dispor de tantas folgas durante o ano, com 60 dias de férias e agora, mais uns 20 de recesso forense. O jurisdicionado, e com toda razão, não compreende o motivo pelo qual o processo dele demora tanto, sobretudo se vai ao Fórum e descobre que o juiz está de férias novamente.
É óbvio que o problema da morosidade não debita somente a este fato. Sinceramente acho, inclusive, que não seja tão representativo assim para o curso do processo, até porque diversos atos são cumpridos na escrivania e pelas partes (embora isso não me faça concordar com a necessidade de tantas férias e folgas, porque isso fere o princípio republicano). Diversas questões devem ser analisadas, como o excesso de formalidades e de vias recursais; o aumento acentuado da demanda jurisdicional e que não é acompanhada na mesma proporção com os quadros judiciários; a desorganização administrativa nos tribunais que impede uma maior dinâmica e soluções eficazes para problemas simples (a preocupação é apresentar projetos e programas apoteóticos, de modo a dar visibilidade midiática aos seus formuladores, embora não represente efetivo resultado para solução dos problemas); e tantos outros.
Acontece que os mentores da Emenda Constitucional 045/2004 (e pode se dizer que o pai da criança foi o ex-ministro e presidente do STF, Nelson Jobim), que modificou parte da estrutura do Judiciário brasileiro (no falso engodo de modernização), atendeu claramente interesses econômicos e externos, buscando com a reforma somente os argumentos da efetividade, rapidez e segurança jurídica nas relações contratuais, sobretudo internacionais, a fim de atrair capital externo (tudo obra do BIRD, FMI e grandes conglomerados internacionais, apadrinhados pelos dirigentes políticos de suas matrizes, na concepção de um mundo globalizado).
Para contemplar esta pauta de reivindicações – não exatamente do povo brasileiro – criou-se pela dita EC 045/2004, cujos propósitos claros e centrais foram: a) criação do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, para cercar os excessos e fazer um controle administrativo das gestões judiciárias (tem conseguido algumas coisas, excedidos em outras, negligenciado e não alcançado soluções em tantas, por vezes preservando com suas decisões verdadeiros privilégios à magistratura); b) instituição da Súmula Vinculante, com o fim de tentar engessar os juízos inferiores, com o argumento da necessidade de segurança jurídica (merece um artigo próprio); c) fortalecimento da solução de conflito na esfera privada com o incentivo da instituição das vias privadas de equacionamento das demandas, forma discreta de enfraquecimento do Judiciário.
Como incremento a todas estas medidas, inseriu-se dentre os direitos e garantias fundamentais, o princípio da celeridade, o qual foi encampado pelo CNJ como razão de satisfação dos interesses dos jurisdicionados. Com isso, passou-se a exigir dos Tribunais, que por sua vez cobram dos juízes cumprimento de metas e divulgação de números, como se aí estivesse a representação do sucesso de suas ações e da eficiência do Judiciário.
O que importa nesta corrida estatística é simplesmente a superação dos recordes anteriores. Não há nenhuma preocupação com os resultados efetivos, como se a eficiência no ato de julgar resumisse-se tão somente na decisão, sem qualquer enlevo para sua qualidade técnica e as razões decidir. Para isso, impõem-se fórmulas prontas vindas dos tribunais superiores e tudo passa a ser produzido em série, como numa verdadeira fábrica de decisões (longe de uma companhia de justiça). E aí de quem divirja!
Neste compasso o juiz já não é mais juiz. É um autômato batedor de carimbos em decisões e sentenças copiladas por assistentes e estagiários; detive de credores em busca dos devedores e de seus bens; burocrata que vive a preencher formulários estatísticos, a responder questionários, a bisbilhotar em sistemas digitais informações de jurisdicionados; rompedor dos direitos e garantias fundamentais porque os interesses individualizados no processo sobrepõem sem nenhuma justificativa plausível, contrariando assim o próprio dever de zelar por tais direitos. Tudo para atender as determinações do CNJ e das Corregedorias de Justiça.
Ao final, o juiz ainda bate do peito envaidecido diante de sua estatística, como um simples encolher de pilhas de autos, sem a mínima responsabilidade com os efeitos e consequências deste movimento. Porém, não consegue perceber que a cada acréscimo neste locomover de montanhas processuais menos juiz é, porque a cada dia os atos praticados já não são seus, mais de auxiliares copiladores.
Para finalizar, segue o poema e seu mote (do livro: SILVA, Denival Francisco da. Poemas Reconvencionais: inverso e reflexo das coisas. Goiânia: Kelps, 2011):

MoteDecreto-Lei 4.657/1942 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: Art. 5º
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
VELHAS FORMAS DE DECIDIR
(Ctrl C + Ctrl V )

Fernando Pessoa
[...] Às vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam…
Depois de escrever, leio…
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu…
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?…

Por vezes tenho interpretações felizes,
Interpretações extremamente felizes, em dizer o direito, mas …
na urgência de atender e não desagradar, prefiro a cópia feita e fácil.
Depois de copiada, sequer leio…
Por que perder tempo com isso?
De que adiantaria reler isso?
Como haveria de mudar isso? Mas, isto é pior do que eu…
Serei eu juiz apenas teclas (Ctrl C + Ctrl V)
Com que repito a valer o que outros já traçaram?

* Juiz de Direito (GO), editor do Blog Sedições

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Sobre a intolerância da elite brasileira e o papel dos juízes para a democracia

Sobre a intolerância da elite brasileira e o papel dos juízes para a democracia


Massacre de São Bartolomeu - François Dubois

Sobre a intolerância da elite brasileira e o papel dos juízes para a democracia

Gerivaldo Neiva *

Em 1572, no episódio que a história oficial denomina “A Noite de São Bartolomeu”, os católicos franceses, apoiados pela nobreza também católica, mataram milhares de protestantes Huguenotes por que não concordavam com suas ideias reformistas. A história relata entre 30 e 100 mil protestantes mortos pelos católicos pelas ruas de Paris e de toda a França. Assim, em nome da fé, de Deus e de Jesus Cristo, a intolerância religiosa, contraditoriamente, causou um dos maiores massacres de inocentes da história da humanidade.
Mais de 100 anos depois da “Noite de São Bartolomeu”, John Locke, um dos maiores filósofos da modernidade, o maior para os ingleses, durante o exílio na Holanda, imposto pela intolerância política, escreveu uma pequena obra que deveria ser obrigatória para todos os estudiosos de todos os ramos do conhecimento: “Carta sobre a tolerância”. É certo que Locke escreveu sua Carta contra os abusos religiosos do absolutismo, mas sua ideia sobre a possibilidade da convivência entre pessoas com ideias divergentes influenciaram e fundamentaram a discussão sobre a concepção de democracia, nos moldes que hoje defendemos.
Além desses, os casos de intolerância são vastos na história da humanidade. Da mesma forma, além de Locke, desde Jesus Cristo a Mandela, são vastos os casos de luta pela igualdade e tolerância entre as pessoas com ideias diferentes. Lutas estas, aliás, que tem valido a pena. O mundo seria outro, para pior, sem as lutas da humanidade e de seus mártires por liberdade, igualdade e solidariedade.
Pois bem, para relembrar os antigos, no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de Dois Mil e Onze, o jornalista Reinaldo Azevedo (Abril – Veja), em um blog na Internet, ao criticar uma nota pública da Associação Juízes para a Democracia (AJD) manifestando seu apoio aos estudantes da USP-SP, elencou os membros da direção da AJD e observou aos seus leitores para que tivessem cuidado com eles quando fossem os julgadores do seu caso na justiça. Isso mesmo: cuidado com os juízes da AJD! Meu nome aparece duas vezes na relação. Como representante regional (Bahia) e coordenação editorial. Os demais nomes “dedurados” estão publicados, sem segredos, no site da AJD.
Antes de continuar, tenho a honra de apresentar a todos a Associação Juízes Para a Democracia (AJD): entidade civil sem fins lucrativos ou interesses corporativistas, tem objetivos estatutários que se concretizam na defesa intransigente dos valores próprios do Estado Democrático de Direito, na defesa abrangente da dignidade da pessoa humana, na democratização interna do Judiciário (na organização e atuação jurisdicional) e no resgate do serviço público (como serviço ao público) inerente ao exercício do poder, que deve se pautar pela total transparência, permitindo sempre o controle do cidadão”.
Quanto a mim, pouco tenho a dizer: Juiz de Direito da Comarca de Conceição do Coité, semi-árido baiano, nascido no sertão da Bahia, filho de agricultores, cumpridor de seus deveres, pagador de impostos, admirador de São Francisco de Assis, menos católico do que cristão e, sobretudo, alimenta o sonho de um dia ainda viver em uma sociedade “livre, justa e solidária”, conforme escrito na Constituição Federal de 1988.
Dito isto, fico a me perguntar, sem respostas rápidas e consistentes, sobre as razões do ódio desferido à AJD e aos seus membros. Da mesma forma, fico a me perguntar, olhando minha trajetória como Juiz de Direito, que mal poderia eu causar, propositadamente, a qualquer pessoa em meus julgamentos? Ora, se nosso propósito consiste exatamente “na defesa intransigente dos valores próprios do Estado Democrático de Direito e dignidade da pessoa humana”, por que agora somos apontados como perigosos aos nossos jurisdicionados?
Poderia até buscar respostas em experts sobre a personalidade humana, sobre a organização da sociedade, sobre o papel da ideologia em uma sociedade de classes etc etc. No entanto, não creio que valha a pena esta busca. Da mesma forma, não creio que valha a pena destilar o mesmo ódio de quem nos ataca. A igualdade de comportamento, ódio por ódio, seria a vitória deles. Então, pensando assim, também não defendo que lhe seja cassado o direito de se expressar ou criticar, pois novamente seríamos iguais e não quero ser igual a ele, jamais. Que continue, portanto!
Minha esperança reside na história da luta incansável pela liberdade. Não a história dos vencedores, mas a história da construção de um novo homem para um novo mundo. É esta a história que nos julgará, condenará ou absolverá. Assim tem sido por séculos e séculos. Uns serão esquecidos, outros irão para o lixo e outros serão lembrados como defensores da possibilidade de uma vida com tolerância, plural, igual, solidária e feliz. Nesta perspectiva de um mundo melhor para todos, então, pergunto: em que “lata” da história foram defenestrados os facínoras e em que “lata” da história são relembrados e celebrados os defensores da vida?
Tenho certo comigo, embasado nesta forma de compreender a história, que precisamos, ao lado do povo oprimido, continuar fazendo nossa revolução todos os dias e que a AJD será lembrada, em futuro não muito distante, como o embrião para o nascimento do Juiz Novo, do verdadeiro Magistrado, comprometido e envolvido com os direitos humanos, com a ética, com a dignidade humana e com a construção de uma nova forma de convivência humana e dos humanos com o planeta. Logo, o julgamento desta nossa proposta e prática de magistratura, é tarefa para a história do povo oprimido. Não é, e jamais será, portanto, tarefa para a elite dominante ou para seus bajuladores de plantão em redações de jornais e revistas comprometidos com a mentira e venda de ilusões.
De todos esses, exploradores e bajuladores, a história também se incumbirá e lhes destinará a “lata” que merecem. Como disse, não é a história morta e finda como eles apregoam, a história dos vencedores, mas a história das ruas, das praças, favelas, do povo oprimido, das lutas e das revoluções que acontecem a cada instante. Esta história, como serve de testemunha o tempo, não para jamais e continuará julgando, condenando e absolvendo. Quem viver, verá!

* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 08.12.2011.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Os crimes sem castigo do Estado Brasileiro e de seus agentes


Mesa de encerramento do Mutirão na Bahia (foto divulgação CNJ)

Os crimes sem castigo do Estado Brasileiro e seus agentes: 1.176 presos “detidos irregularmente” na Bahia foram soltos durante o mutirão carcerário

O Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça na Bahia resultou em 1.176 liberdades, de um total de 1.634 benefícios concedidos a presos provisórios e condenados que estavam detidos irregularmente em estabelecimentos prisionais do estado. A equipe do Programa Mutirão Carcerário, do CNJ, analisou 7.148 processos entre 10 de outubro e 30 de novembro, período em que foram realizadas as inspeções em presídios, delegacias e cadeias públicas do estado.
“A experiência foi boa, houve uma evolução do primeiro (mutirão) para este”, afirmou o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, juiz Luciano Losekann, que representou o Conselho na divulgação do diagnóstico do sistema prisional baiano, que inclui os resultados da concessão de benefícios e verificação das instalações físicas, ocorrida nesta terça-feira (06/12). 
O magistrado do CNJ se referia ao primeiro mutirão realizado no estado, em 2009. “A iniciativa tem como objetivo propor que haja melhoria do sistema de justiça criminal”, disse. O mutirão na Bahia foi coordenado pelas juízas Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, Maria de Fátima Alves da Silva, do Tribunal de Justiça do Pará, designadas pelo CNJ, e pelo juiz-corregedor Cláudio Daltro, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). Também participaram da mobilização uma equipe de servidores e magistrados do TJBA.
Aos presos condenados foram concedidos benefícios como extinção de pena, livramento condicional, progressão de regime, indulto, remição de pena, prisão domiciliar, dentre outros.
“Os resultados foram bons, principalmente porque foi possível traçar um diagnóstico de como estão sendo tratados os processos criminais e de execução penal, além das efetivas solturas”, a juíza Maria de Fátima Alves da Silva, coordenadora do mutirão.
O juiz corregedor Cláudio Daltro, um dos coordenadores da iniciativa, considerou o mutirão uma “experiência positiva, apesar das dificuldades estruturais”. O magistrado destacou que a avaliação possibilitará maior agilidade. “Iremos aguardar os relatórios para trabalharmos em cima do que for indicado, criando ações específicas” concluiu o magistrado.
A presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, desembargadora Telma Britto, encerrou as atividades parabenizando o CNJ e agradecendo à equipe pelo empenho. “Todo resultado exposto reflete problemas de muitos anos. Eu gostaria de solicitar ao CNJ a análise do problema a partir de causas primárias, como a falta de recursos orçamentários e carência de magistrados”, disse a presidente.
A desembargadora ainda destacou projetos como o Pacto pela Vida e o Começar de Novo, desenvolvido em parceria com o CNJ. “O Poder Judiciário, nessa gestão, não se eximiu das responsabilidades. Buscamos atender melhor aos jurisdicionados, tanto os comuns, quanto os recolhidos no sistema prisional, já que a magistratura da Bahia quer atingir a excelência”, concluiu. 
O mutirão contou com os juízes Andremara dos Santos, Freddy Carvalho Pitta Lima, José Carlos Rodrigues do Nascimento, Mariângela Lopes Nardin, Moacir Pitta Lima Filho, Patrícia Sobral Lopes e Rosana Passos.
Também compuseram a mesa de encerramento do mutirão, realizado no auditório do Tribunal de Justiça, a primeira vice-presidente do Tribunal, desembargadora Maria José Sales Pereira; o corregedor-geral de Justiça, desembargador Jerônimo dos Santos; o promotor público Geder Luís Gomes, representando o Ministério Público, e Carlos Sodré, chefe de gabinete da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap), representando o secretário Nestor Duarte.

Veja quer Calar ADJ (Associação Juizes pela Democracia)

Tolice suprema, coleção formidável de bobagens, condoreirismo cafona.
Com esses e outros adjetivos ainda piores, o jornalista Reinaldo Azevedo iniciou, em seu blog, uma onda de ataques da revista VEJA à Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Nos posts que buscavam detonar a associação por uma nota crítica à ação da Polícia Militar na USP, sobrou até para os educadores que seguem Paulo Freire: "idiotas brasileiros e cretinos semelhantes mundo afora".
O nível do artigo já se responde por conta própria.
Todavia, na edição impressa que veio às bancas no sábado último, o editor-executivo da revista subscreveu um texto que, sem qualquer constrangimento ou escrúpulo político, comparou a associação a um tribunal nazista.
O descompromisso com a razão nem é o que mais ressalta no artigo -a foto gigantesca de pupilos de Hitler, fora de tom ou propósito, só se explica como um ato falho. No artigo, Carlos Graieb utiliza expressões que se encaixariam perfeitamente no ideário nazista: propõe dissolver a associação "política" ou impedir que seus membros usem a toga.
Reinaldo Azevedo, com ainda menos pruridos no mundo virtual, explicitou, numa ação que evoca o macarthismo, os nomes de todos os diretores, representantes e membros de conselhos da entidade, alertando leitores para que jamais aceitem ser julgados por estes juízes.
Que competência ou legitimidade para a posição soi-disant de corregedor ele tem não se sabe. Mas seus seguidores foram instados a identificar os juízes associados pelo próprio colunista, que deu status de artigo a mensagem de um advogado falando do desembargador 'liberal' apreciador de samba.
VEJA está aturdida e indignada com a afirmação de que existe direito além da lei. Os nazistas também ficavam, porque as barbáries escritas no período mais negro da história da humanidade eram legais. Jamais deixaram de ser barbáries por causa disso.
A prevalência dos princípios constitucionais é o que propunha, sem grandes novidades, a nota da Associação Juízes para a Democracia. Se juízes não podem fazê-lo em um estado democrático de direito, na tutela da Constituição que prometeram defender, algo definitivamente está errado.
Mesmo para quem conhece a linha editorial de VEJA, cuja partidarização na política é sobejamente criticada, espanta que o interesse em calar quem pensa de outra forma, parta justamente de um órgão de imprensa.
Que a falta de pluralismo de suas páginas já fosse, por assim dizer, um oblíquo atentado à liberdade de expressão, o explícito intuito de extirpar opiniões contrárias não deixa de ser aterrorizador. Sob esse prisma, lembrar o nazismo não é mais do que medir o outro com a própria régua.
A Associação Juízes para a Democracia tem vinte anos de serviços prestados ao debate institucional na magistratura e fora dela - e eu me orgulho de fazer parte dessa história quase por inteiro.
A AJD tem entre seus objetivos o respeito incondicional ao estado democrático de direito e jamais deixou de denunciar quando este se fez ameaçado. Bate-se sem cessar pela independência judicial e é militante na consideração do juiz como um garantidor de direitos.
A promoção permanente dos direitos humanos, compartilhada com inúmeras outras entidades da sociedade civil, sempre incomodou aos que se candidatam a porta-voz dos poderosos. Mas recusamos o propósito de quem quer fazer da democracia apenas uma promessa vazia.
A associação nunca se opôs a criticar o elitismo no próprio Judiciário, nem temeu se mostrar favorável à criação de um órgão para exercer o controle externo. Tudo por entender que desempenhamos, sobretudo, um serviço essencial ao público - o que levou a AJD a participar da Reforma do Judiciário propondo, entre outros temas, o fim das sessões secretas e das férias coletivas.
Anticorporativista, a associação jamais defendeu valores em benefícios próprios, o que pode ser incompreensível em certos ambientes. Recentemente, bateu-se pela legalidade da instauração de processos administrativos contra juízes pelo Conselho Nacional de Justiça, na contramão de interesses de classe.
Em vinte anos, seus membros têm sido convidados a participar de vários debates no Poder Judiciário, no Congresso Nacional e também na mídia.
O exercício contínuo da liberdade de expressão, que fascistas de todo o gênero sempre pretenderam mutilar, não vai ceder ao intuito de quem pretende impor sua visão e seus conceitos como únicos.
VEJA não está em condições de ensinar estado de direito, se desprestigia a liberdade de expressão.

* Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo

domingo, 4 de dezembro de 2011

Caso Marcelinho Paraíba e o Crime de estupro após o advento da Lei nº 12.015/09

 

Por Auriney Uchôa de Brito
No dia 30 de novembro de 2011, foi noticiada a prisão do jogador de futebol Marcelinho Paraíba sob a acusação de ter tentado estuprar uma mulher de identidade ainda não revelada. A suposta vítima, em depoimento, informou que o jogador a teria constrangido à beijá-lo, puxando-a pelos cabelos. Por meio de exame de corpo de delito, foram registradas lesões leves nos seus lábios.
O jogador foi preso em flagrante e encaminhado à autoridade policial local que o indiciou pelo delito de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, na modalidade tentada, mandando-o para o presídio do município de Campina Grande-PB.
O juiz que recebeu o flagrante analisou a possibilidade de manutenção da prisão e considerou que não havia motivos para tanto rigor e o liberou após 5 horas de cárcere.
A informação que gerou todo o espanto da sociedade foi a de se considerar que um beijo possa ser estupro. Assim, Comete estupro quem beija uma mulher a força?
Antes de se sopesar esse questionamento, é importante que sejam lembradas as alterações advindas com a Lei nº 12.015/09. O art. 213 do CP passou a conter também as elementares do delito de atentado violento ao pudor, que figurava no extinto art. 214, vigorando a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Conjução carnal possui um significado teórico e prático muito fácil de ser identificado, o que não se pode dizer do denominado ato libidinoso. Este integra os chamados conceitos jurídicos indeterminados, a ser medido de acordo com a moralidade sexual razoável da sociedade. Abrange uma série de atos que variam entre os de maior gravidade, como o coito anal, até os de menor gravidade, como os chamados beijos lascivos. Nesta segunda hipótese, imprescindível que se confira ao caso concreto a devida dimensão, para que um ato perpetrado sem o menor interesse sexual já se enquadre nesse tipo. Importante que sempre se prestigiem os preceitos de proporcionalidade e razoabilidade.
Esclarece-se que O crime de estupro, com a reforma já mencionada, deixou de ser um crime contra os costumes para ser uma ofensa ao bem jurídico dignidade sexual, não só da mulher, mas de qualquer pessoa, por isso a expressão mulher foi substituída por alguém.
Para ser crime, portanto, o beijo lascivo deve ofender a dignidade sexual da pessoa. Se ofender, nem se trata de tentativa, mas sim de estupro consumado.
A conduta deve ser avaliada dentro do grau de lesividade necessária para se fazer a adequação típica material, além de ser indispensável a verificação do dolo na ação.
Os beijos lascivos até podem, numa situação extrema, preencher a elementar ato libidinoso previsto no crime de estupro quando, por exemplo, executado numa parte pudente da vítima, desde que sejam verificados o dolo e a lesividade da conduta em face à sua dignidade sexual.
Condutas como os beijos forçados em festas, micaretas, assim como as apalpadas, nessas mesmas circunstâncias, não podem ser considerados lesivos ao bem jurídico em questão. Podem, ao máximo, considerando o descontrole do autor, ser visto como um ato preparatório do crime em estudo, mas não uma tentativa, e muito menos uma consumação.
Com essas informações já é possível analisar o caso do jogador Marcelinho Paraíba e não é difícil perceber a arbitrariedade cometida pelas autoridades envolvidas no caso, ressalvada, evidentemente, a do juiz que, independentemente dos argumentos, ordenou a imediata liberação do mesmo.
Aqui serão apontadas as falhas jurídicas em caráter eminentemente técnico, deixando de lado todos os argumentos de corporativismo apontados para o caso, uma vez que o irmão da vítima também era delegado, ou de que o jogador foi vítima de extorsão.
Primeiramente, diante da exposição acerca das circunstâncias do crime, não há como se cogitar a tipificação dessa conduta no art. 213 do CP, por absoluta falta de proporcionalidade entre o fato e a pena prevista. Como já dito, um beijo, para ser considerado ato libidinoso forçado, ele precisa ter a sexualidade, gravidade e o dolo como características que lhe dão idoneidade para ofender o bem jurídico.
A conduta em análise poderia, ao máximo, ser tipificada como crime de constrangimento ilegal, previsto no art. 146 do CP, com pena de detenção de 03 meses a 1 ano ou multa, somada a pena da lesão corporal culposa pelos ferimentos nos lábios, que é de detenção de 2 meses a 1 ano. Se não, simplesmente restaria a sanção, menos agressiva, da esfera cível pelo constrangimento sofrido.
A outra falha identificada no caso foi a de o delegado ter indiciado o acusado pelo crime em sua forma tentada. Ora, se o beijo foi realizado de forma forçada e foi considerado como ato libidinoso, então o delito está consumado e não tentado, pois todos os elementos da definição legal do crime estão presentes.
O crime de estupro, portanto, não exige mais aquela violência da penetração forçada como eram anos atrás, é possível que se consume com um contato diverso, mas não qualquer um, ou um simples contato, assim como não basta que seja forçado. É preciso que seja forçado e dimensionado de acordo com a moralidade média da nossa sociedade, sendo imprescindível, nesse sentido, que se verifique a sexualidade e o dolo na ofensa da dignidade sexual, sob pena de se punir de forma desproporcional e gerar uma insegurança reversa na população, maior que a da impunidade.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

....parto com gestantes algemadas....

Algemar mulheres durante o parto é atentar contra a dignidade humana




Diante de notícia veiulada na grande imprensa* de que no sistema prisional paulista, gestantes são levadas a parto, algemadas, segue a nota da Associação Juízes para a Democracia.

Algemar mulheres durante o parto constitui, além de atentado à dignidade humana, desrespeito à integridade moral das mulheres e ofensa à especial proteção à maternidade e à infância, instituída como direito social, na Constituição Federal, além de infringir tantos tratados internacionais que é inimaginável que aconteça em São Paulo, em pleno século XXI.



NOTA DA AJD SOBRE PARTOS COM GESTANTES ALGEMADAS



A AJD - ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA, entidade não governamental, sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito e a defesa dos Direitos Humanos, tendo em vista a confirmação das notícias de realização de partos com o uso de algemas em gestantes sujeitas ao cumprimento de penas, vem a público manifestar o seguinte:

(1) algemar mulheres durante o parto constitui, inquestionavelmente, atentado à dignidade humana (art. 1º da Constituição Federal), desrespeito à integridade moral das mulheres (art. 5º XLIX, da Constituição Federal) e ofensa à especial proteção à maternidade e à infância, instituída como direito social (art. 6º da Constituição Federal),

(2) constitui descumprimento da garantia à mulher de assistência apropriada em relação ao parto, instituída no art. 12, § 2º da Convenção da ONU relativa aos direitos políticos da mulher (1952),

(3) submete também o recém-nascido a discriminação em razão do parentesco, com violação das garantias e direitos constitucionais de proteção à infância (art. 227 da Constituição Federal),

(4) subverte a lógica constitucional de acesso universal e igualitário aos serviços de saúde (art. 196 da Constituição Federal),

(5) representa flagrante descumprimento do dever de atendimento individualizado e tratamento diferenciado a que fazem jus as gestantes nos termos da Lei Federal nº 10.048/00 e, ainda,

(6) desvela evidente violação do artigo 143 da Constituição de São Paulo, que determina que a política penitenciária estadual deve observar as regras da ONU para o tratamento de presos, dentre as quais se destaca a regra nº 11 das “Regras de Bangcoc”, segundo a qual a presença de pessoal penitenciário e de segurança, durante o atendimento médico, observará a dignidade da presa.

Além de tudo isso, em face da absoluta desnecessidade dessa providência desumana e cruel, está ocorrendo também flagrante violação à Súmula Vinculante nº 11 do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a qual estabelece que o uso de algemas somente é lícito em casos absolutamente excepcionais e determina a aplicação de penalidades nos casos de abuso e constrangimento físico e moral dos presos ou presas.

Assim, como o procedimento em menção constitui prática ilegal, repugnante, covarde e imoral, além de violadora da dignidade humana, a AJD EXIGE que Governo do Estado determine a imediata abstenção dessa prática, bem como promova de forma efetiva a responsabilização de Secretários de Estado e Servidores, por suas respectivas condutas, de ação ou omissão, na forma da Lei.



*Reportagem da Folha de S. Paulo, edição de 22/11/11

Segundo relatos, mãos ficam atadas no momento mais vulnerável da gestante

Pastoral Carcerária recebeu nos últimos meses denúncias de pelo menos seis casos ocorridos no Estado
ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO

E.R., 28, foi presa quando estava no sétimo mês de gestação. Cumpria pena de 12 anos de prisão no Centro Hospitalar Penitenciário, uma das unidades que funcionam no antigo Complexo do Carandiru, quando sentiu as primeiras contrações.
Escoltada até o Hospital de Vila Penteado, na zona norte de São Paulo, ela foi submetida a uma cesariana.
“Algemaram meus pés no aparelho ginecológico”, relata E., em depoimento obtido com exclusividade pela Folha. “Tiveram que fazer cesárea, mas a médica não pediu para retirar as algemas.”
A prática de manter parturientes algemadas durante o parto foi confirmada à Folha em pelo menos dois hospitais públicos de São Paulo.
“Dá pena ver a mulher chegar algemada com aquele barrigão bem na hora do parto”, diz uma voluntária que trabalha no Hospital de Vila Penteado há seis anos e pede para não ser identificada.
“Se a presidiária é boazinha, às vezes os PMs tiram as algemas. Já as mais nervosas ficam presas até na sala de parto”, diz um funcionário do Hospital Geral de Taipas, também na zona norte.

INCHAÇO
Foi na maternidade de Taipas que P.O., 32, deu à luz o sexto filho. O parto foi normal. A caçula veio ao mundo com a mãe presa à maca por uma corrente em um dos pés e com as mãos algemadas.
“Minha perna estava inchada. Fiquei com uma levantada, mas não dava para ficar na posição de parto”, diz a presa, ao relatar que a filha foi levada para um abrigo e dada para adoção depois.
O relato faz parte do documentário “Mães do Cárcere”, produzido por advogadas da Pastoral Carcerária para debater questões relativas à maternidade no sistema prisional.
O filme, de 17 minutos, foi exibido em agosto durante um seminário no Tribunal de Justiça de São Paulo.
O secretário de Administração Penitenciária do Estado, Lourival Gomes, afirma desconhecer o uso de algemas no parto. “Não acredito nisso. É um absurdo.”
Segundo ele, não existe regulamentação determinando que a mulher tenha de ficar algemada durante o parto.
“Quando se chega ao hospital com uma presa quem vai dizer o que fazer é o médico”, defende-se o secretário.

‘PACIENTES’
Pela proximidade da Penitenciária Feminina de Sant’Anna, os hospitais de Vila Penteado e de Taipas estão entre as unidades públicas de saúde que mais recebem presas em trabalho de parto.
Também nas proximidades, o Complexo Hospitalar do Mandaqui é outra estrutura que realiza partos de presidiárias. Ali, no entanto, elas não são algemadas.
“Aqui, elas são pacientes”, afirmou à Folha a diretora do hospital, Magali Proença. “Trabalhamos para mudar essa cultura.”
A reportagem constatou que na maternidade do Mandaqui os médicos exigem a retirada das algemas durante o atendimento às parturientes. Fato confirmado também por detentas que deram à luz na unidade.
Em Taipas, P.O. afirma que o obstetra exigiu que ela fosse mantida algemada.

DENÚNCIAS
A Pastoral Carcerária recebeu nos últimos meses denúncias de que pelo menos seis presas permaneceram algemadas durante o parto.
“Não há justificativa para usar algemas no parto, além de torturar e estigmatizar ainda mais as presas”, afirma Rodolfo Valente, advogado da Pastoral Carcerária.
Voluntária no atendimento às presas de Sant’Anna, a advogada Thaisa Oliveira colheu as primeiras denúncias. “É estarrecedor que alguém imagine uma fuga mirabolante de uma presa durante o parto, momento de total vulnerabilidade”, afirma.
“É estarrecedor também que agentes da saúde se recusem a realizar o parto até que as algemas sejam colocadas”, completa a advogada.
As presas são escoltadas durante todo o atendimento por uma agente penitenciária e por policias militares.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

....a confissão....

Naquele momento, creio que Ivan estaria em piores mãos se ao invés de mim, viesse a ser julgado por seu próprio advogado








A confissão



-O senhor vai ser interrogado em um processo crime e não tem obrigação de responder as perguntas que eu lhe faço. É sua chance de defesa, o senhor entendeu?

O silêncio do réu indicava que não.

Ele ensaiou balançar a cabeça, mas pelo que percebi ficou em dúvida para que lado.

Eu repeti a frase padrão que antecedia a todos os interrogatórios e servia de alerta para o direito ao silêncio. Ivan, que estava mais preocupado em falar do que ficar quieto, me indagou:

-Mas eu posso ou não apresentar a minha versão?

O interrogatório do réu passou por diversas transformações nos últimos anos.

Quando comecei a julgar, era um ato privativo do juiz. O promotor e o advogado podiam estar presentes, mas dele não participavam.

Eu costumava atenuar essa proibição, permitindo ao advogado que fizesse, querendo, perguntas por meu intermédio, mas a maioria não insistia. Aliás, a maioria nem tinha advogado. Somente depois do interrogatório é que era nomeado o defensor público.

De lá pra cá, pode-se dizer que o processo penal evoluiu muito.
Primeiro com a presença do advogado. Depois, que ele pudesse participar com perguntas. Finalmente, o interrogatório foi transferido para o fim do processo, para que o réu tivesse conhecimento de todas as provas produzidas contra ele, antes de oferecer a sua versão.

O interrogatório ao final é uma garantia ao réu. Mas esvaziou um pouco o ato, porque depois de todas as testemunhas prestarem seus depoimentos e o réu submeter-se a reconhecimento pessoal, muito da convicção do juiz sobre o processo já estava formada.

As teses de defesa se insinuavam nas perguntas do advogado ou na própria escolha das testemunhas.

Com a robustez das provas, o interrogatório ao final fez por revigorar a confissão, como uma forma de abrandar a pena, reduzir danos.

Era mais ou menos nessa situação que estava Ivan.

Seu advogado imprudentemente antecipara este propósito, desde que Ivan foi reconhecido por todas as vítimas. Como era reincidente, ele pretendia compensar o acréscimo da pena com a confissão.

Mas não havia combinado bem com os russos.

Quando Ivan me perguntou se podia dar a sua versão, o advogado sussurrou-lhe uma orientação que eu só fui conhecer ao término da audiência, confidenciado pela minha escrevente:

-Não inventa!

Naquele exato momento era Ivan e não o advogado o dono da palavra, todavia.

-Olha doutor, ele me dizia, eu peguei sim as camisas. Mas roubar eu não roubei...

O advogado demonstrou o primeiro desconforto. Começou a se mexer na cadeira e segurar nervosamente seus óculos, pensando no que viria a partir daí.

-A polícia me pegou com as camisetas na mão, é verdade. Eu joguei elas pra cima quando o policial me abordou. Mas eu não sabia que estava acontecendo um roubo...

O advogado levantou-se abruptamente da cadeira e sem saber o que fazer, foi até o fundo da sala. Pigarreou, ensaiou sair e voltou, sem conseguir controlar a aflição e a sua contrariedade.

Naquele exato momento, acredito que Ivan estaria em piores mãos se ao invés de mim, viesse a ser julgado por seu próprio advogado.

A história não tinha muito nexo, nem era crível, porque ele havia sido reconhecido por três vítimas como um dos assaltantes que entrara na loja. De fato, não estava armado, mas pegava as camisas, enquanto os outros faziam os funcionários reféns. Na saída, foi flagrado literalmente com a mão na massa e tal como uma cena de filme pastelão, jogou as camisas sobre o policial e tentou fugir. Em vão.

Mas, para mim, e para o processo, sua versão era a de que apenas pegara as roupas para levar, supondo que elas estivessem sendo compradas. Não admitia o roubo.

O advogado não aguentou a rebeldia do réu e tentou intervir.

Primeiro, disse que Ivan não estava entendendo bem a pergunta, alegação que era no mínimo constrangedora.

Depois, fugindo à praxe dos interrogatórios, se aproximou do réu e cochichou algo no seu ouvido.

Mas se conversando com ele, antes do interrogatório, cara a cara, não lhe fizera entender a estratégia, como supor que um rápido sussurro ia dar conta da situação?

-Bom, doutor -ensaiou o réu um retorno- eu sabia que tinha alguma coisa de errado com as camisas...

E antes mesmo que o advogado pudesse terminar seu suspiro de alívio, emendou:

-Mas achei que era de contrabando.

Foi o que bastou.

-Pela ordem, excelência, pela ordem... -bradou o advogado.

O réu, assustado, não entendia direito o que se passava. Diversamente de tudo a que havia se preparado, quem olhava feio e gritava com ele não era o juiz. Mas o seu próprio advogado.

Foi aí eu que eu resolvi intervir –não aguentei o paroxismo da situação nem a agonia do doutor.

Na verdade, a versão de Ivan era o pior dos dois mundos. Confirmava, em essência, a prova da acusação –sim, era ele mesmo que estava lá no momento do roubo- e apresentava, em contrapartida, uma alegação que estava longe do aceitável. Nem era o bastante para eximi-lo do crime, nem o suficiente para reduzir sua pena.

-Senhor Ivan. Seu advogado aqui está insatisfeito com a versão que o senhor está apresentando, o senhor sabe porque?

Não, ele de fato não sabia.

-Porque ele gostaria que o senhor confessasse para que pudesse obter uma redução na pena. Não é grande, mas o suficiente para o senhor receber a pena mínima. E a versão que o senhor está me dando não é propriamente uma confissão. O senhor entendeu?

Desta vez ele balançou a cabeça. Para um lado e para o outro.

Não era mesmo fácil de entender, principalmente sendo o juiz a fazer tal advertência.

Por fim, permiti que o desesperado advogado explicasse para ele e depois de uns minutos, refiz a pergunta que Ivan me respondeu, com certo constrangimento:

-É, doutor, então é isso mesmo, é tudo verdade...

A confissão não foi lá tão voluntária. Mas eu abaixei a pena assim mesmo. E todos saíram mais ou menos satisfeitos.

Da minha parte, nunca perdi a sensação de que prometer um benefício a alguém em troca de uma confissão não passava de uma forma um pouco mais sofisticada de violência.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Sigo a dissidência (Streck) contra o Relator (Fux): presunção da inocência não é regra, é princípio!

 Lenio Streck e Luiz Fux

Ministro equivoca-se ao definir presunção da inocência *


Exercer a crítica no direito é uma tarefa difícil. Principalmente em terrae brasilis. Por aqui, normalmente é magister dixti. Mormente se quem disse é ministro de Corte Superior. Não conseguimos construir ainda uma cultura em que as decisões judiciais – em especial as do Supremo Tribunal Federal – sofram aquilo que venho denominando de “constrangimentos epistemológicos”. O que é “constrangimento epistemológico”? Trata-se de uma forma de, criticamente, colocarmos em xeque decisões que se mostram equivocadas, algo que já chamei, em outro momento, de “fator Julia Roberts”, em alusão à personagem por ela interpretada no filme Dossiê Pelicano, que, surpreendendo o seu professor em Harvard, afirma que a Suprema Corte norte-americana errou no julgamento do famoso caso Bowers v. Hardwick. No fundo, é um modo de dizermos que a “doutrina deve voltar a doutrinar” e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária das decisões tribunalícias. Lembro da decisão do então ministro Humberto Gomes de Barros (AgrReg em ERESP 279.889), do Superior Tribunal de Justiça, na qual ele dizia: “Não me importam o que pensam os doutrinadores”, importando, para ele, apenas o que dizem os Tribunais...! Imediatamente divulguei contundente artigo dizendo a Sua Excelência que “importa, sim, o que a doutrina pensa”. Lançava, então, um repto à comunidade jurídica: a doutrina tem a função de doutrinar. Criticava, também, a cultura de repetição de decisões (ementários, etc) que se formou no Brasil.
Temos de construir as bases para um pensamento crítico que denuncie equívocos como o voto que abordarei na sequência, da lavra do ministro Luiz Fux. A crítica que exporei não tem a pretensão de ser algo do tipo J’accuse, de Emile Zola, em que este fazia contundente manifesto contra a injustiça cometida contra o capitão Dreyfus. Posso, no máximo, estar indignado como Zola.
Por isso, permito-me trazer a lume o meu protesto contra o voto do ministro Luiz Fux, por quem nutro profundo respeito pessoal, no processo da Lei Ficha Limpa. Nosso amigo – meu e do ministro Luiz Fux – James Tubenschlak (de saudosa memória, que morreu prematuramente quando, com sua esposa Tânia, visitava o Rio Grande do Sul) nos uniu há muitos anos, no velho Instituto de Direito, o ID. Ele, Luiz Fux, já um jurista (então membro do Ministério Público) conhecido, e eu, iniciando minha trajetória. James nos prestigiava. E como! Era Amilton Bueno de Carvalho, Lenio Streck, Luiz Fux, Silvio Capanema, Nagib Slaibi, Alexandre Câmara, Afranio Silva Jardim, Juarez Cirino, Jacinto Coutinho, Caio Mário, João Mestieri, Barbosa Moreira, Yussef Cahaly, Calmon de Passos (quem mais arrancava aplausos de pé). Havia muitos outros. O Hotel Glória ficava repleto, tendo que colocar telões. Não havia ainda redes sociais. Nosso espaço era cavado com muito (mais) esforço do que se faz hoje.
Cada um seguiu sua trajetória. Fux foi guindado ao STJ e ao STF. E o que o ministro Fux vem fazendo? Lançando belos votos, como outra coisa não se poderia esperar de um jurista talentoso. Entretanto, não estamos mais nos palcos do Hotel Glória. Não precisamos mais disputar as palmas daqueles milhares que lá iam. Hoje ele é um ministro do Supremo Tribunal da República Federativa do Brasil. Duzentos milhões de habitantes. Fux não é mais palestrante. Relembro: é ministro. Só tem onze na República. E cada um tem responsabilidade política. E que responsabilidade, em um país eivado de judicializações, que, diga-se, não ocorrem por culpa do STF; são, sim, contingenciais...! Cada decisão tem efeitos colaterais. De cada decisão, extrai-se um princípio. Outro dia o meu caríssimo ministro concedeu Habeas Corpus, invocando algo que não consta no Código Penal: a teoria da actio libera in causa. Ou seja, tivesse o STF coerência nas decisões, portanto, respeitasse o STF a origem do direito fruto de suas decisões, teríamos, a partir de agora, algo inusitado: nunca mais se conseguirá acusar alguém por dolo eventual na hipótese em que o autor dirija embriagado e atropele (e mate). A tese do voto: somente se pode acusar alguém por dolo eventual se ficar demonstrado que o agente “se embriagou com o propósito de cometer um crime”. Prova, pois, diabólica. Impossível de se fazer. Aliás, nunca houve no mundo um processo julgado nesse sentido. A velha actio libera in causa não é um princípio. E tampouco é uma regra. Nem mais se estuda essa tese nas salas de aula. Porém, o ministro Fux proferiu um belo voto. Pergunto: e os efeitos colaterais dessa decisão?
Poderia falar de outros votos. Mas a minha crítica epistêmica é dirigida a um caso bem recente, a não passar desapercebido pela população. Trata-se do caso da “Lei Ficha Limpa” (ou “Ficha Suja”, como queiram). Neste caso, penso que o ministro – permito-me dizer, com todas as vênias do mundo; afinal trata-se de um ministro e no Brasil quase ninguém tem coragem para criticar decisões da Suprema Corte – equivocou-se. Tomo, pois, a coragem de “acusá-lo” epistemicamente.
Contextualizarei. De há muito, ocupo-me em minhas pesquisas da questão que envolve a determinação do conceito de princípio. Mais especificamente, minhas preocupações giram em torno do problema da decisão judicial e da existência ou não do chamado “poder discricionário dos juízes” no momento da solução dos chamados “casos difíceis” (em Verdade e Consenso, Saraiva, 4ª ed., demonstro a inadequação hermenêutica desse último conceito).
Na esteira da construção dessa busca pela determinação do conceito de princípio, deparei-me, mormente nos anos mais recentes, com situações inusitadas. Certamente, a mais pitoresca de todas é aquela que nomeei (em diversos textos, e especialmente, em Verdade e Consenso) de panprincipiologismo, uma espécie de patologia especialmente ligada às práticas jurídicas brasileiras e que leva a um uso desmedido de standards argumentativos que, no mais das vezes, são articulados para driblar aquilo que ficou regrado pela produção democrática do direito, no âmbito da legislação (constitucionalmente adequada). É como se ocorresse uma espécie de “hiperestesia” nos juristas que os levassem a descobrir por meio da sensibilidade (o senso de justiça, no mais das vezes, sempre é um álibi teórico da realização dos “valores” que subjazem o “Direito”), à melhor solução para os casos jurisdicionalizados.
Pois bem. No julgamento conjunto das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578, o STF parece ter inaugurado uma forma nova desse fenômeno se manifestar. Com efeito, ao lado do uso inflacionado do conceito de princípio (por exemplo, o panprincipialismo é, corretamente, denunciado pelo ministro Tóffoli em vários votos, inclusive fazendo alusão ao meu Verdade e Consenso, op.cit.), o voto que até o momento foi apresentado nesses julgamentos (Lei do “Ficha Limpa) produz uma espécie de retração que, mais do que representar uma contenção ao panprincipiologismo, manifesta-se como um subproduto deste mesmo fenômeno. Trata-se de uma espécie de “uso hipossuficiente” do conceito de princípio. Já não se sabe o que é mais grave: o panprincipialismo ou a hipossuficiência principiológica.
O que seria esse “uso hipossuficiente do conceito de princípio”? Explico: ao invés de nomear qualquer standard argumentativo ou qualquer enunciado performático de princípio, o Judiciário passa a negar densidade normativa de princípio àquilo que é, efetivamente, um princípio, verdadeiramente um princípio, anunciando-o como uma regra. Aliás, nega-se a qualidade de princípio àquilo que está nominado como princípio pela Constituição...!
O que ocorreu, afinal? O julgamento em tela trata da adequação da Lei Complementar 115/2010 (chamada lei da “Ficha Limpa”) à Constituição. Neste momento, não me preocupa tanto o mérito da ação, mas aquilo que é feito com a Teoria do Direito. Qual é a serventia da Teoria do Direito? Não se trata de uma questão cosmética. Pelo contrário, é da Teoria do Direito que se retiram as condições para construir bons argumentos e fundamentar adequadamente as decisões. Quero dizer: tem-se a discutir o que foi feito da Teoria do Direito dos últimos 50 anos, a tanto ocupar a questão do conceito de princípio e que, agora, no voto do ministro Fux, parece não ter muita serventia. Vejam-se as palavras do ministro:
“A presunção de inocência consagrada no artigo 5º, LVII da Constituição deve ser reconhecida, segundo lição de Humberto Ávila, como uma regra, ou seja, como uma norma de previsão de conduta, em especial de proibir a imposição de penalidade ou de efeitos da condenação penal até que transitada em julgado decisão penal condenatória. Concessa venia, não se vislumbra a existência de um conteúdo principiológico no indigitado enunciado normativo”.
Não se vislumbra no enunciado normativo (presunção da inocência) um conteúdo principiológico? Concessa venia, ministro Fux. A posição exarada por Vossa Excelência sugere claramente uma passagem ao largo de toda a discussão a travar-se no âmbito teórico para saber o que é, efetivamente, um princípio. E o faz com apelo a um argumento de autoridade, baseado numa concepção isolada, no contexto global da teoria do direito e da filosofia do direito, a qual não pode ser tida como dominante. Aliás, a vingar a tese do ilustre jurista citado pelo ministro, a igualdade – virtude soberana de qualquer democracia, como aparece em Dworkin e, numa perspectiva mais clássica, no testemunho de Alexis de Tocqueville sobre a democracia americana – não seria uma princípio, mas sim um simples postulado! Na verdade, não sei se o próprio professor Ávila concorda com a tese apresentada no aludido voto. Não sei se ele nega(ria) densidade de princípio à presunção da inocência.
A afirmação de que a presunção de inocência seria uma regra (sic) e não um princípio é tão temerária que uniria dois autores completamente antagônicos, como são Robert Alexy e Ronald Dworkin, na mesma trincheira de combate. Ou seja, ambos se uniriam para destruir tal afirmação. Isso porque a grande novidade das teorias contemporâneas sobre os princípios jurídicos foi demonstrar que, mais do que simples fatores de colmatação das lacunas (como ocorria nas posturas metodológicas derivadas do privativismo novecentista), eles são, hoje, normas jurídicas vinculantes, presentes em todo momento no contexto de uma comunidade política. Tanto para Dworkin quanto para Alexy – que, certamente, são os autores que mais representativamente se debruçaram sobre o problema do conceito de princípio – existe uma diferença entre a regra (que, evidentemente, também é norma) e os princípios. Só para lembrar: cada um dos autores (Dworkin e Alexy) construirá sua posição sob pressupostos metodológicos diferentes que os levarão, no mais das vezes, a identificar pontos distintos para realizar essa diferenciação. No caso de Alexy, sua distinção será estrutural, de natureza semântica; ao passo que Dworkin realiza uma distinção de natureza mais fenomenológica.
De todo modo, tanto as posições de Dworkin quanto as de Alexy concordam que um dos fatores a diferenciar os princípios das regras diz respeito ao fato de que sua não-incidência (ou aplicação) em um determinado caso concreto não exclui a possibilidade de sua aplicação em outro, cujo contexto fático-existêncial seja diferente daquele que originou seu afastamento. As regras, por outro lado, se afastadas de um caso, devem, necessariamente, ser afastadas de todos os outros futuros; exigência decorrente de um PRINCÍPIO, que é a igualdade de tratamento. Isso mesmo: a igualdade, que não é uma regra e, sim, um princípio).
Para Dworkin, os princípios representam uma comunidade, vale dizer: uma comunidade política se articula a partir de um conjunto coerente de princípios que justifica e legitima sua ação política. Por isso o direito pós-bélico (Losano) – o que surge depois da Segunda Guerra - é um novo paradigma. Só não entende isso quem deseja retornar ao século XIX, ao tempo do “império das regras”; aliás, ao tempo do positivismo primitivo-exegético-sintático.
Ora, os princípios possuem uma “dimensão de peso” (como aparece em Levando os Direitos a Sério), o que significa dizer que, em determinados casos, um princípio terá uma incidência mais forte do que noutro (ou noutros). Isso não impede que, num outro caso com circunstâncias distintas de aplicação, aquele princípio – afastado anteriormente – volte com maior força, dependendo da construção que se faz, com base na reconstrução da cadeia da integridade do direito. É o que tenho chamado de DNA do direito.
Além de Dworkin, Alexy ressalta essa peculiaridade dos princípios (sequer mencionarei Habermas, radical no sentido de que os princípios são normas, sendo, portanto, deontológicos). Para Alexy, tão citado e tão pouco lido (e menos ainda compreendido) e adepto da distinção semântico-estrutural entre regras e princípios, os princípios valem prima facie de forma ampla (mandados de otimização). Circunstâncias concretas podem fazer com que seu âmbito de aplicação seja restringido. Os princípios – que, em algumas passagens da sua Teoria dos Direitos Fundamentais, Alexy equipara com os próprios direitos fundamentais – encontram-se em rota de colisão, e os critérios de proporcionalidade derivados da ponderação resolvem essa aparente contradição, fazendo com que, em um caso específico, um deles prevaleça. Lembre-se o resultado da ponderação dos princípios colidentes é uma regra que Alexy chama de “norma de direito fundamental adscripta” (que, na prática cotidiana da aplicação do direito, ninguém faz). E lembre-se ainda que, nos termos da teoria alexyana, essa regra deve servir para resolver casos similares àquele que ensejaram a ponderação dos princípios colidentes. Aqui, uma pausa: será que algum juiz ou tribunal no Brasil já se preocupou em determinar a regra de direito fundamental adscripta quando opera com a ponderação? Será que qualquer um deles já aplicou tal regra a outros casos similares? A resposta é óbvia: não há um caso a retratar esse tipo de aplicação. A própria ponderação é uma ficção. É uma máscara para esconder a subjetividade do julgador.
De todo modo – para concluir o raciocínio anterior – é bom lembrar que até Alexy é explicito ao afirmar que os princípios, quando afastados da aplicação em um caso específico, podem voltar com densidade normativa forte em outros casos futuros. As regras a terem como modo de aplicação a subsunção, ou valem ou não valem: se excluídas de um caso DEVEM SER, necessariamente, EXCLUÍDAS de outros futuros.
Desse modo, fica clara a fragilidade do argumento exposto pelo caríssimo ministro Fux, a quem tomo a liberdade de indagar o seguinte, e a partir da breve exposição sobre o melhor da doutrina mundial a respeito de regras e princípios; doutrina recepcionada no Brasil por tantos juristas e tribunais: 1 - se a presunção de inocência é mesmo uma regra, como é possível dizer que ela pode ter sua aplicação restringida no caso de condenações confirmadas pelo Tribunal (e os casos de competência originária, seriam o quê?) e, ao mesmo tempo, valer para aqueles que foram condenados pelo juiz singular apenas? 2- se ela é uma regra, não deveria então também ser afastada nesses casos?
Note-se que o argumento é tão frágil que melhor ficaria se fosse dito que a presunção de inocência é (mesmo) um princípio: se justificada sua restrição no caso de condenações confirmadas pela segunda instância, conservar-se-ia intacta sua aplicação no âmbito do juiz singular! Todavia, nos termos em que foi formulado no voto, como pode uma regra valer num caso e não valer no outro? Haveria ponderação entre regras, como querem – de forma equivocada – alguns de nossos doutrinadores? Rebaixada à condição de regra, a presunção da inocência entraria em um “processo” de ponderação? E disso exsurgiria que tipo de resultado? Uma “regra da regra”?
Mais: afinal, se a ponderação é a forma de realização dos princípios e a subsunção é a forma de realização das regras (isso está em Alexy, com todos os problemas teoréticos que isso acarreta), falar em ponderação de regras não é acabar com a própria distinção entre regras e princípios tornando-os, novamente, indistintos? Parece-me que o imbróglio teórico gerado pelo voto do ministro Fux bem representa um verdadeiro “leviatã hermenêutico”, isto é, uma guerra constante de todas as correntes de aplicação, estudos, e interpretação do Direito entre si, a gerar uma confusão sem precedentes, onde cada um aplica e interpreta como quer o Direito, desatentos ao fato de que todo problema de constitucionalidade é um problema de poder constituinte. No fundo, mais uma vez venceu o pragmati(ci)smo, derrotando a Teoria do Direito.
Ainda, numa palavra, várias perguntas: a) se a presunção de inocência não é um princípio, o devido processo legal também não o é? b) E a igualdade? Seria ela uma regra? c) Na medida em que o cada juiz deve obedecer a “regra” da coerência em seus julgamentos, isso quer dizer que, daqui para frente, nos julgamentos do Min. Fux, a “regra” (sic) da presunção da inocência pode, em um conflito com um princípio, ou até mesmo com uma regra, soçobrar? d) Uma outra regra pode vir a “derrubar” a presunção da inocência? E) E o que dirão os processualistas-penais de terrae brasilis, quando confrontados com essa “hipossuficientização” do princípio da presunção da inocência, conquista da democracia?
Finalizo repetindo que a questão a se discutir aqui não diz respeito ao mérito do julgamento do “caso Ficha Limpa”. Nem quero discutir as possibilidades de restrição ou não do direito fundamental à presunção de inocência. A questão é simbólica (lembremos de Cornelius Castoriadis). O que representa, no plano do futuro do direito em terrae brasilis, o exposto no voto do ministro Luiz Fux? Quais são os efeitos simbólicos disso? Lembremos, aqui também, de Bourdieu, quando fala do poder de violência simbólica dos discursos.
Nada se deve objetar a que algumas teses sejam construídas de forma pragmati(ci)sta. Essas teses podem fazer sucesso no mundo jurídico. Mas não hão de subjugar décadas de discussões e avanços produzidos na Teoria do Direito. Talvez a maior conquista nesse (e desse) direito pós-Auschwitz tenha sido, efetivamente, a principiologia constitucional, pela qual ingressa o mundo prático no direito, com a institucionalização da moral no direito (não esqueçamos de Habermas). Por isso, não se pode vir a dizer que a presunção da inocência não seja um princípio. Por mais “valor” pragmático que isso possa vir a ter. O direito não sobrevive de pragmati(ci)smos. Direito não é um conjunto de casos isolados. Portanto, o “problema” não é a decisão de um determinado caso, mas, sim, como se decidirão os próximos. Definitivamente, não há grau zero de sentido!
Portanto, o problema é de ordem teórica: maus argumentos podem construir más decisões. E isso é algo que deve ser evitado. Quem sabe, prestigiemos mais a Teoria do Direito. Ou para que ela serve? Indago: por que existem tantos Programas de Pós-Graduação em Direito no Brasil? Existem mais de mil e quinhentas teses de doutorado – parcela delas pagas com bolsas custeadas pelo povo e orientadas por prestigiosos professores – sustentando que “princípios não são (ou não podem ser) regras”, ou trabalhando essa distinção entre regras e princípios (particularmente, nem concordo com a distinção semântico-estrutural entre regra e princípio, mas isso é assunto para outro momento; para mim, princípios são normas; são, sempre, deontológicos; portanto, não são mandados de otimização!). Deve haver mais de três mil teses de mestrado, feitas no Brasil e no exterior, sustentando o contrário do que diz o ministro Fux. Aliás, registro, o ministro Fux é um prestigiado professor doutor, com brilhante tese defendida em renomada Universidade. Tudo parece conspirar a favor das teses que são contrárias às do ministro Fux.
Assim, senti-me na obrigação de registrar minha contrariedade ao voto de Sua Excelência e da doutrina por ele sufragada. Não tenho o “lugar da fala” de Luiz Fux; o que ele diz repercute em todo o Brasil em fração de segundos. Não tive a felicidade de ser indicado pelo presidente da República ao digníssimo cargo de ministro do Supremo Tribunal. Por outro lado, tenho muitos alunos e leitores, a não esperarem menos de mim do que agora faço. Defendendo a Academia. Defendendo a Constituição. Com todas as vênias. Sei que não estamos mais no Hotel Glória e nem James Tubenchlak está na platéia, vigilante, exigindo, com gestos e olhares, que sejamos aplaudidos de pé, como tantas vezes lá fomos ovacionados, mormente os “Meninos do Rio” (assim James anunciava, com extremo carinho que tinha por todos nós, o trio brilhante Fux-Capanema-Nagib, para, na sequência, anunciar Amilton-Lenio-Below ou outro palestrante que “fechava” este painel). Hoje, o “mercado” de palestrantes é tomado por jovens, que muito se assemelham a pastores pentecostais. Mas é pelos velhos tempos que procuro ser crítico. Temos que ser críticos. E dizer as coisas que precisam ser ditas. Aqui, da planície ao Planalto. Com respeito e carinho.