terça-feira, 20 de setembro de 2011

....o bilheteiro fanho do cinema gay....

Rir de uma testemunha, no meio da audiência, era o mico que mais temia pagar


O bilheteiro fanho do cinema gay, da série Crônicas do Crime



Da última vez, tinha sido com dona Yoko.

Eu estava desatento, despachava processos que ficavam em cima da mesa, aproveitando cada instante dos pequenos intervalos entre as audiências. Só depois que a escrevente tinha colocado todas as partes sentadas, foi que peguei a pauta para conferir o nome da primeira testemunha.

-Então.... dona. .. dona.. Yoko...Okada.

E não consegui segurar o riso. Saiu uma gargalhada daquelas tão involuntárias quanto incontroláveis. Dona Yoko levou na esportiva. Como admitiu, resignada, estava acostumada às gozações que as armadilhas da cacofonia lhe preparavam. Mas para mim, rir de uma testemunha na frente de todos era um daqueles micos que mais temia pagar em uma audiência.

A memória do vexame e o aprendizado do autocontrole foram me poupando, com o tempo, de situações assim constrangedoras.

Mas quando o bilheteiro fanho do cinema gay começou a falar, anos depois, percebi que todo meu esforço fora inútil. Duas décadas de experiência, técnicas de respiração, atenção redobrada ao processo no momento mais crítico. Nada disso funcionou diante daquela voz extraordinariamente anasalada que nos pegou de surpresa logo na primeira resposta.

Respeito, consideração às diferenças, seriedade e profissionalismo. Tudo ruiu em menos de um minuto depois do grunhido quase ininteligível que a testemunha soltou na sala. E quanto mais eu olhava para os outros na mesa, na vã expectativa de me acalmar, mais diminuía a concentração.

Foi um pouco por isso, a consciência pesada de perder as estribeiras, rindo do defeito alheio como um aluno de colégio, que me impediu de censurar o próprio bilheteiro cada vez que ele se referia, da forma mais espontânea e ao mesmo tempo vulgar, à vítima do roubo que havia testemunhado em seu cinema:

-Foi aí, então, que o viado entrou no banheiro....e depois que o viado entrou, foi lá o ladrão atrás dele, do viado... e quando o rapaz saiu, o viado ainda ficou...

Na quarta ou quinta vez, quando a coisa já começava a se transformar em constrangimento, o bilheteiro, sagaz, emendou em seu próprio benefício:

-Viado é modo de dizer, né doutor? -autorizando que todos ríssemos sem culpa.

A essa altura, ele já se sentia o dono do processo, o centro das atenções.

Na berlinda, um envergonhado comerciante paranaense que fora preso instantes depois de fugir do cinema e encontrado uma quadra de distância, na posse da arma de fogo.

O único cubículo fechado do banheiro masculino foi o local do crime.

Iludida, a vítima viu a promessa de um prazer efêmero e reservado se transformar em confusão e violência. Quando o réu lhe mostrou a pistola, não era nenhuma metáfora. Era uma ordem para que entregasse seu relógio, seu celular e sua carteira.

A vítima mostrou, então, que ser homossexual não resultava em nenhuma fraqueza. Desviou corajosamente a arma dando um golpe na mão do agressor e gritou por socorro. Foi nesse momento que o bilheteiro ouviu o disparo e ganhou o corredor, ainda a tempo de ver o réu, assustado com a reação, fugindo para a rua.

-É esse mesmo, doutor. Eu tenho certeza total –disse o bilheteiro com ar triunfante, na sessão de reconhecimento.

E quando caminhávamos de volta à sala de audiências, convicto do dever cumprido, ele fez questão de acrescentar que o seu cinema era, ao invés do que podia parecer à primeira vista, um lugar muitíssimo bem freqüentado.

-Tem polícia que vai lá, doutor.... Delegado e tudo.... Até promotor frequenta...

E antes que eu tivesse chance de estancar a fanfarronice de suas inconfidências, arrematou rapidamente com ar matreiro:

-Juiz não. Juiz eu nunca vi...

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