sábado, 27 de agosto de 2011

....os olhos da morte....


Ele assinou o termo de audiência e me olhou nos olhos, como se quisesse dizer algo que absolutamente não sabia


Os olhos da morte, da série Crônicas do Crime


Poucas vezes vi a morte de perto dentro de uma sala de audiências.

É verdade que dois réus, de varas vizinhas, chegaram a se projetar para a janela, no desespero de uma situação a qual não conseguiam escapar.

E isto ainda no velho Palácio Mauá, imponente e alto edifício no centro velho de São Paulo. Para além de suas janelas, nenhuma salvação à vista.

Um deles tentou a fuga ao vazio depois de ouvir o juiz decretar a prisão preventiva. Corre-corre frenético, notícia rapidamente se espalhando pelos corredores e o batimento cardíaco do Fórum Criminal se acelerando até não mais poder. Ao chegar ao local, ouvi o juiz, aos gritos, acalmando o réu, salvo pela ação do PM: “Fica sentado aí, que eu não vou mais te prender”.

Mas nada me marcou mais do que a morte que eu não vi. Ou melhor, só vi pelos olhos do réu.

Luiz Felipe estava preso, mas por um outro processo. Na minha vara, respondia a um delito de furto, sem maior gravidade.

No sistema da lei que então vigorava, a audiência era apenas para seu interrogatório. Dez minutos, se tanto.

Eu já tinha feito quase todas as perguntas principais, mas ainda faltava ditar as respostas dele no termo.

A auxiliar judiciária, que fazia a qualificação das testemunhas do lado de fora, entrou abruptamente na sala. Ficou sem jeito de interromper a audiência, mas por sua cara de susto, tanto eu quanto a escrevente que me acompanhava percebemos que havia algum bom motivo.

A escrevente interrompeu a datilografia e se levantou. Foi até a entrada da sala. A auxiliar cochichou com ela algo que eu não pude ouvir. Mas a escrevente voltou, se aproximou, e também cochichou comigo:

-Doutor, é a mãe do réu.

Os familiares ficavam no saguão do andar ou nos corredores dos cartórios, antes da entrada para as salas de audiência. Conseguiam, quando muito, um rápido olhar ao preso, no momento em que a escolta saía do elevador em direção à audiência. Era o que bastava para que pudessem ver se o filho, o pai, o marido, estava vivo e em bom estado. Ocasionalmente, quando a sorte lhes sorria, por sobre a censura dos policiais, que recomendavam cabeça baixa para todos os réus, conseguiam até trocar um olhar, mínimo fragmento de carinho.

A mãe de Luiz Felipe estava nessa condição.

Perto da entrada do corredor da sala de audiências. Não se apresentou a ninguém ao chegar e ali ficou apenas para ver seu filho passar à sua frente, de cabeça baixa.

Não sei se foi o filho algemado, olhando para seus próprios pés. Se foi o medo do que mais podia acontecer a ele. Mas a minha auxiliar disse que ela parecia sem ar, com a mão no peito e os olhos arregalados, antes de se arrebentar no chão frio do oitavo andar do Fórum, enquanto Luiz Felipe era interrogado por mim.

Dentro da sala, a gente nem percebeu. Ouvíamos, concentrados, o réu contar a sua versão para a acusação.

Passados tantos anos, não lembro mais do que ele me disse em sua defesa. Se confessou, se negou ou se alegou algo que o isentasse de culpa. Mas lembro da cara de pânico da minha auxiliar e a palidez da escrevente que, forçadamente serena, me inteirou dos fatos aos sussurros, para que o réu nada percebesse:

-Acho que ela teve um ataque cardíaco, doutor. Foi levada às pressas para a enfermaria.

A enfermaria ficava em algum andar alto do Fórum. Décimo quinto, décimo sexto, por aí. Para chegar mais rápido, policiais da escolta a levaram pelo elevador privativo, que juízes e promotores usavam de manhã e os presos à tarde.

Não sei o quanto eles demoraram para chegar. Não sei que aparelhos havia na tal enfermaria. Não vivíamos a época em que desfribiladores se tornaram tão comuns. Não tenho ideia do que uma sala mais aparelhada podia ter feito por ela. Fato é que não demorou mais do que dez minutos para que a notícia do fracasso do atendimento batesse de volta à nossa porta.

Estávamos finalizando as perguntas de praxe, justamente sobre a família do réu e suas oportunidades, quando a informação chega por completo e quase sem som. A auxiliar balança a cara, de um lado a outro, em sinal de negativo e a apreensão toma conta de todos. Até o réu, que não prestara atenção na entrada dela da outra vez, começa a estranhar.

A única coisa que consigo pensar é em pedir à escolta que leve Luiz Felipe até a enfermaria e quinze minutos depois, com um constrangimento que não cabe em mim, fazê-lo sentar-se novamente na sala, para assinar seu interrogatório.

Ele não disse mais nada.

Não gritou, não reclamou, não bradou por justiça nos corredores.

Não chorou e parecia estar tão atônito com a situação que não podia compreendê-la.

Nas garras da justiça, sob a tutela constante de policiais armados, no fétido e lúgubre sistema penitenciário, é ele quem devia estar correndo risco de vida.

Acho que um misto de surpresa, tristeza e culpa o fez ficar calado. Ele assinou o termo de audiência e me olhou nos olhos, como se quisesse dizer algo que absolutamente não sabia, antes de ser levado de volta à sua cruel rotina.

Seu olhar perdido, estagnado, como quem mira algo que não tem capacidade de enxergar, me marcou profundamente.

Foi nos seus olhos, que eu vi a morte.


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